O desenvolvimento que clama por regulamentação mais ágil

O desenvolvimento que clama por regulamentação mais ágil
Como avançar com a medicina de precisão sem um marco regulatório adequado?
JACKLINE CONCA – ANALISTA DE COMÉRCIO EXTERIOR
25/06/2019
Artigo publicado originalmente no portal JOTA: http://bit.ly/2NioAxW
No Brasil e no mundo, a regulamentação de tecnologias emergentes pode e deve facilitar não apenas a criação de novos negócios, empregos e renda, mas gerar impacto social e até salvar vidas. Este é o caso de Ruanda, país africano pioneiro em implementar um programa de distribuição de sangue para transfusão via drones,cobrindo em minutos um território que antes demoraria horas de transporte terrestre. O sistema implantado tem salvado inúmeras vidas ao atacar a principal causa de mortalidade materna no mundo, a hemorragia pós-parto1.
Mas o ponto é: o dever de casa bem feito por Ruanda foi além da implementação tecnológica, incluiu sobretudo desenhar uma regulação inovadora que permitirá a aprovação de outros tipos de voos e modelos de negócios. A experiência inicial exitosa permitiu que o Ministério da Saúde de Ruanda ousasse se comprometer em conectar 12 milhões de cidadãos a qualquer suprimento médico em menos de 30 minutos.
Diante desse caso, inevitavelmente pensamos no Brasil e na dificuldade que enfrentamos na era da 4ª revolução industrial para implantar projetos tecnológicos em larga escala que gerem impacto social e econômico.
Um dos motivos de fundo para esse cenário de morosidade refere-se à forma como desenhamos sistemas regulatórios e à dificuldade que temos, como formuladores de políticas públicas, de acompanhar a velocidade disruptiva de tecnologias emergentes.
O Airbnb, por exemplo, passou de 21 mil visitantes em 2009 para acumular 500 milhões de usuários em 2019, enquanto os municípios ainda tentam descobrir formas de regulamentar o mercado de aluguel de curta-duração2 (lembrando que não regulamentar também é decisão de política pública que deve ser feira de forma consciente, não por omissão ou incapacidade da administração pública).
Extrapolando esse exemplo para o contexto da 4ª revolução industrial, será que nossa legislação de proteção de dados pessoais está preparada para um mundo com 20 bilhões de dispositivos sem fio conectados à internet3 ou para os novos casos de uso viabilizados pelo 5G? Como integrar inteligência artificial no diagnóstico e tratamento médico ou avançar com a medicina de precisão sem um marco regulatório adequado? Menos de 20% dos executivos de empresas de tecnologia acreditam que o mercado deve se autorregular no que se refere à inteligência artificial, mas como garantir que a dose do remédio não vai matar o paciente?4
No caso de Ruanda, em parceria com o Centro para a Quarta Revolução Industrial do Fórum Econômico Mundial em São Francisco, a regulação para drones foi baseada em performance e não em abordagens antigas da aviação focadas em requisitos específicos de equipamentos.
Determinaram-se limiares aceitáveis de risco em vez de especificações técnicas que as indústrias e operadores deveriam seguir, independente do equipamento usado. Mais importante que a abordagem utilizada, foi o processo de colaboração e co-criação conduzido com autoridades da aviação civil, indústria, startups e academia.
Num mundo em que legisladores não acompanham o ritmo da inovação, aproveitar a informação e o feedback em tempo real das diversas partes interessadas torna-se fundamental, garantindo aprendizado e melhoria contínuos.
Ruanda não inventou o drone, os sistemas embarcados ou o modelos de negócios em torno dessa tecnologia, mas teve o mérito da execução. No mesmo caminho segue Gana e Índia, que se inspiram na regulação e nos pilotos testados no país africano para implementar modelos de distribuição de suprimentos médicos no país. Gana já está colocando na prática a maior rede de distribuição de medicamentos via drones do mundo: serão 600 voos diários para atender, em 15 minutos, 2000 centros de saúde no país5.
Já o governo indiano, além da área de saúde, também tem apoiado pequenos agricultores, cujas propriedades sofrem com a seca, a melhorarem seus sistemas de irrigação e áreas agricultáveis. Os moradores desses vilarejos aprenderam sobre rotação de culturas, aquaponia e hidroponia, piscicultura, manejo de bio-resíduos, agricultura orgânica e proteção de cultivos biológicos usando drones, e agora estão aplicando a tecnologia em suas propriedades6.
O Brasil tem uma excelente oportunidade de sair da teoria e também partir para a implementação em larga escala com o plano de ação de Internet das Coisas (IoT)7. 84% das implantações de internet das coisas (IoT) no mundo estão endereçando, ou tem potencial para endereçar, as metas de desenvolvimento sustentável da ONU8 e podem aumentar muito a eficiência e qualidade dos serviços públicos.
Para tanto, revisitar nossos modelos de formulação de política pública e regulação, buscando mais agilidade e inclusão, é essencial. A União Europeia tem um mecanismo interessante de cooperação chamado “Innovation Deals” pelo qual empreendedores apresentam ao governo os desafios regulatórios que seus produtos e serviços podem enfrentar para alcançar o mercado. Se a regulação for um obstáculo real à inovação, reguladores devem dar visibilidade ao tema e endereçá-lo. Essa é uma forma rápida e eficaz de identificar barreiras às inovação e oportunidades de aprimoramento regulatório baseado em fatos e não somente em opinião ou interesse de determinado grupo.
Como servidora pública, posso afirmar com segurança que a grande maioria dos meus colegas usam o Google para encontrar insights e evidências que precisamos para formular políticas públicas.
Com mais dados seria possível perceber melhor os riscos e oportunidades de determinada tecnologia e então aplicar com mais segurança testes e experimentações, como sandbox regulatórios, teste A/B, pilotos e outras ferramentas que geram fatos para a tomada de decisão.
Muitas vezes se negligencia a importância que milhares de funcionários públicos têm para o processo de adoção tecnológica (como, por exemplo, implementar projetos de cidades inteligentes sem gestores públicos qualificados?). Eles são uma interface essencial e devem estar sempre aprendendo práticas que tragam novas habilidades para as instituições públicas. O conhecimento técnico no governo deve ocorrer de forma tão rápida quanto no setor privado, assim como o compartilhamento de informações e a aproximação de formuladores de política pública, reguladores e inovadores a ciclos mais rápidos de feedback e iteração.
Finalmente, em tempo de vacas magras, direcionar os esforços de governo no incentivo à adoção das tecnologias disponíveis, na execução e mensuração dos resultados e do retorno do investimento é uma maneira de colher frutos no curto e médio prazo.
Obviamente não se deve deixar de lado as ações estruturantes (como requalificação profissional e educação, construção de um ecossistema de inovação dinâmico e competitivo e criação de infraestrutura para P&D, conectividade e ambientes de teste). No entanto, em um país que não há razões para invejar Ruanda, estão faltando hoje casos de sucesso que inspirem novos projetos de IoT, com apoio ou independentes da iniciativa pública.
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1 https://www.weforum.org/agenda/2018/12/in-rwanda-drones-are-delivering-blood-to-remote-communities/
2 https://press.airbnb.com/fast-facts/
8 http://widgets.weforum.org/iot4d/
JACKLINE CONCA – Servidora pública federal da carreira de Analista de Comércio Exterior (Ministério de Economia). Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo, com mestrado em Economia pela Universidade de Barcelona, atua desde 2009 com temas relacionados à inovação, empreendedorismo e desenvolvimento produtivo. Atualmente é fellow no Centro para a 4ª Revolução Industrial do Fórum Econômico Mundial em São Francisco.